sábado, 26 de junho de 2010

Arranco tatu sem fazer força



Segundo o escritor Paulo Dantas, biógrafo e amigo de Monteiro Lobato, literatura é denúncia, referindo-se aos escritores Euclides da Cunha e Monteiro Lobato. No caso do Luís Carlos Castro Palma, o Batata, contratado para escrever crônicas semamais sobre a vida caipira, ele desenvolveu uma narrativa de memórias e causos que ouviu contar, sempre enaltecendo os personagens que marcaram sua vida. Neste texto, lavrado em 3 de março de 2003, o herói é Matias, um homem simples, empregado de fazenda.


Arranco Tatu sem fazer força
por Luís Carlos Castro Palma - o Batata

Era fácil reconhecer o dia em que Matias ia tomar uma bebedeira. Vestia, no pescoço, um lenço de seda azul com listras amarelas. Para ajustá-lo, tipo nó de gravata, um broche anelado, feito de chifre, que representava a cabeça de um touro guzerá. Peça bem feita destacava os olhinhos que imitavam rubis (Matias jurava que eram verdadeiros). O adorno era o seu xodó e lembrança de uma viagem a Belo Horizonte.
Caboclo lavrado no machado, Matias era desempenado, alto e forte. Feições que chamavam a atenção pelo queixo forte, nariz de gavião e incríveis olhos esverdeados. Quando moço, ele que era o xodó... das moças.
Casado com Minda (Delminda), criava com paixão um casal de filhos. Era um dos melhores trabalhadores da fazenda. Executava, com gosto e competência, qualquer serviço. No meio dos camaradas mostrava-se alegre, xistoso e muito bom companheiro. Perto de estranhos, ficava meio caladão sem esconder a simpatia. Era muito religioso e todas as sexta – feiras, na Quaresma, convidava o pessoal para cantos e terço na sua casa. Sempre dizia: "Quem sabe amar, ama Deus".
Era econômico, pensava no futuro dos filhos e no bem-estar da família. Sempre aproveitava muito bem a terrinha cedida pela fazenda para os mantimentos; no pastinho da colônia nunca faltou uma criação de sua posse. Horta farta, bem formada e cuidada. Mangueiro e chiqueiro nutrido de porcos. A sua capoeira de aves era melhor que a do patrão e a frangada carijó o seu orgulho. Nasceu na roça, sabia viver na roça.
No sábado qualquer, a mais ou menos cada dois meses, ele tomava um banho quente e bem caprichado. Vestia calça bem passada a ferro, camisa quadriculada. Barba feita e cabelo aparado pelo Dadinho, barbeiro da fazenda. Botinha sanfonada feita pelo Delcidio Malaspina. Preta, para ser luxo. Gastava meia-hora para ajeitar o lenço. As onze e meia, subia no carroção da fazenda que levava o pessoal até a venda do "seo" Miguel. Nestes dias sempre levava um saco onde grunhia uma leitoa bem escolhida. Naquele carroção sempre ponteava uma viola.

Assim eram os agregados

Passado o entusiasmo da alegria da chegada e bebidos os dois primeiros goles, Matias chamava "seo" Miguel para um particular. Negociavam a leitoa e o vendeiro sempre encomendava uns frangos. Tinha o dia na frente. Jogava malha, truco e cantava com o violeiro Zé Tindolfo. Bebia cachaça com capilé, comia manjuba salgada e lingüiça curtida. Tornava-se um daqueles raríssimos bêbedos alegres e sem confusões. Todos conheciam a sua alegria, participavam e respeitavam. O seu brado etílico era: "Hoje eu arranco quarqué tatu sem fazer força". A turma gargalhava e repetia o grito.
Chegava em casa pelas nove horas. As crianças já dormiam. Minda o esperava com amor e uma canja gorda. Sempre ganhava um agrado: um corte de tecido, um vidro de perfume ou uma bijuteria vistosa. Como ela o amava! As crianças ganhavam doces e roupinhas. Matias bebia a canja numa caneca de folha e contava as vantagens do seu dia. Não dormia, desmaiava. A mulher, que havia ajudado ele se despir, só agora conseguia tirar o broche de cabeça de touro e o lenço de seda.
Acordou virado para um lado e o mundo para o outro. O teto girava. A boca tinha o gosto de rojão estourado e a língua parecia uma pedra de amolar canivete. A cabeça, por dentro, não tinha direção, semelhava uma jaca madura que estava balançando para cair. O corpo estava cheio de coceiras mas ele não sabia onde elas se localizavam exatamente. Rangeu os dentes: "Mardita Tatuzinho, nunca mais".
Minda o esperava na cozinha. Ele chegou abatido e meio sem graça. Bebeu quase um copo de café bem quente e foi se lavar, excepcionalmente, na bica de lavar roupa. Na volta, cruzou com Dadinho, que passava pelo terreiro. Não se falaram, mas ambos tiveram uma crise de risos. Na cozinha, comentou com a mulher enquanto empoleirava um filho em cada perna; "Minda tive cada sonho. Sonhei com um corguinho limpinho, cheio de lambari de rabo vermeio. Depois veio outro, esse ruim. Um bando de capetas montou uma serraria num lugar redondo. Não paravam de serrar com aquela serra de fita. Aquela barulhenta igual a da serraria aqui da fazenda. Fui descobrindo que o lugar oco era o oco da minha cabeça. Dói até agora ". Riu e se voltou para as crianças: "E a minha filhotada, ganhou doce? Oceis é o sempre do pai".

ARRANCO TATU SEM FAZER FORÇA

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