sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Bastião na terra, no céu e na charrete.

O Batata assinou esse texto em 27 de Novembro de 2001. É a cara dele, sem tirar nem por.

A carrocinha era tão conhecida, que nem mesmo a cachorrada da colônia, na fazenda vizinha, latia quando ela passava. Afinal, cumpria uma rotina diária de mais de vinte anos. Só com o Bastião do Marcolino eram mais cinco.
“Carrocinha de leite”, tinha lema de carteiro: “faça chuva, faça sol haverei de fazer a entrega”.
Primeiro foi o burro “ Margoso “, que labutou enquanto as suas pernas tinham forças. Depois veio um cavalo branco nomeado “Tenente”. Uma cobra não deixou ele durar muito. Veio a mula, preta, de nome “Locomotiva”, que casqueou quatro anos de estrada Outros aconteceram. Agora, é esse burrinho que não tem bela figura, mas é possuidor de uma força e de uma mansidão que surpreendem Nasceu para aquele serviço.
Com mês e meio já “podia” ir e voltar sozinho se deixassem. O nome dele é “Pitombo” e acho que ninguém sabe porque.Ele quase estreou a troca. Uma charrete. Bastião chutou os pneus antes de montar:
--- Tem cambra de ar?
O padre Geraldo afirmou certa vez, num sermão, que todas as almas são criadas perfeitamente iguais. Nós, com a vida, é quem as mudamos. Entretanto, muita gente acha que a alma do Bastião do Marcolino sofreu um certo capricho na criação. Era de uma natureza tão boa que tinha um esplendor próprio. Nasceu bom como todos, porem a sua alma teve uma força natural para se destacar em bondade Aquele sorriso tímido tinha raízes em alguma coisa sobrenaturalmente eleita. Deus também é homem. Só para lembrar.
Ele fazia qualquer serviço na fazenda, mas aos poucos foi ficando no retiro das vacas leiteiras. Trabalhava bem. O que trazia uma certa irritação era a sua calma. Era incapaz de realizar qualquer coisa com a presteza normal. Nada de preguiça, mas senhor de uma divisão de tempo que era só dele. Em certos momentos, até parecia um aluado. Outra coisa: a sua miopia, criadona como ela só, imprimia em seu semblante uma espécie de expectativa sem curiosidade. Bastião, querido Bastião.
Com idade perto da aposentadoria, tinha como única tarefa levar a charrete até a cooperativa de laticínios. Vida merecida de rei. Ele sempre foi “chegado” numa cachaça. Nunca provocou confusão na vida. Agora a “mardita” era a primeira-ministra do seu reinado. Viviam bem, um com a outra.
Na ida, tudo bem. Sentado na quina dianteira, pilotava com desenvoltura os cascos do “Pitombo”. Entregava, certinho, o leite. Na volta, perto da saída de Brodósqui para Jardinópolis, existia a venda do Alvécio. “Pitombo” esperava o Bastião apear e logo se dirigia, sozinho, para uma garaginha ao lado. Um teto. Se a Terra era o seu reino, a venda era o seu Céu. Muito querido, ali ficava até lá pelas quatro horas da tarde. Quase não falava, mas o seu sorriso era constante. Tinha uma sinceridade. Beiçudo, sorria como os querubins sem dentes. Não fazia bico de anjo, apenas mostrava uma amizade sem regras de boteco. Quem “gozava” naquela candura?
Para voltar, já meio “entornado”, sentava na parte de trás da carroça, recostava-se no latão de leite e deixava as pernas pendentes e soltas Ordenava; Pitombi (sic) , agora é com sua “adireção” de burro bão”. O burro ia parar certinho na porteira do curral. Alguém acordava o Bastião do Marcolino, homem “bão”. Alma de elite naquele corpo tão feio. Para nós.

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domingo, 27 de junho de 2010

A Lição da Carroça





A Lição da carroça


Artigo escrito em 23 de Março de 2002 às 6:29 da manhã.

Aquele dia não teve escola. Um enxame de abelhas voejava na boca do sino e a professora resolveu dispensar a classe. Os alunos, enquanto desciam acompanhando a mestra, mal escondiam a alegria pela fatalidade acontecida. Professora disse; “ Fiquem em casa. Não troquem e nem suje a camisa do uniforme. Vou pedir para o Marcilio espantar as abelhas. Vocês vão para casa e fiquem esperando o sino tocar. Virem nos pés e voltem para a escola. Vai ter aula”.
Nove horas e meia, nada de sino. Tunísio ajudava a mãe à catar feijão quando o seu pai chegou meio com pressa. “Moleque tire essa camisa branca e vem me ajudar. Não tem escola pruqe o patrão mandou, Mandou eu buscar quarenta teia ali nos Bandeira. Avie pra me ajudar”.
Montaram na carroça e foram buscar as telhas na fazenda vizinha. Ali, para quem conhece sabe, a estrada sobe um trecho da serra e tem uns dois pedaços de pedra, logo depois da curva da capoeira à canhota.
Carroça reforçada e de rodas grandes trelava dois burros. No serviço, só estava o Paçóla, cumpridor para levar a carroça e agüentar nos cascos a descida daquelas dez arrobas de telhas em cima da carroça que tinha breque. Fomos e voltamos com sucesso.
Banho gostoso, a água até parecia mais quente. O Toniquim, meu irmão, tinha arrancado aquele dente mole. Fome, eu estava vazado e meu pai não chegava. Mãe Deolinda serviu o jantar sem falar nada. Dormi de cansaço, sem saber que era dia de pagamento e meu pai ia chegar mais atrasado .
Perto de uns seis depois, no sábado à tarde, ele me convidou para ir até a venda do “seo” Miguel para buscar uma “banda “ de capado, compra do patrão . Fomos na mesma carroça, No caminho reparei para ele que a carroça fazia muito barulho. Paçola, forte e rápido. Disse: “Espere.”
Na volta, mestrou de pai, “ Bote reparo: quando a carroça está vazia, faz barulho, carregada não faz tanto. É que nem a conversa da gente”.

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Ana morreu.

Escrito em 4 de Julho de 2002. Boa leitura.

Ana Morreu, por Luis Carlos Castro Palma.

A estradinha até parecia mais amarela embaixo daquela luz do sol das duas horas. Cósca, a cadela, puxava a rota com dificuldade. Magra e manquitola arfa o fôlego. Rastro de três patas na areia quente que coleia o cerrado bruto de natureza e feição. Exausta, resolve procurar sombra. Uma lobeira mais perto. Ajeitou-se ao estender o focinho. Barulhinho. Uma carreira de saúvas fazia oscilar retalhos de folhas. Para não morrer, dormiu. Morreu dormindo. Pura inanição.
Matilha de nove trelas de veadeiros treinados põe respeito a qualquer buzina. Rastro do veado achado, a cachorrada se estrela no ponto. Desatrelados, o cão-mestre Lapórte*, com uivos de chamar demônios, abriu a tribuzana da caçada. Tardinha, volta para a sede. Caçadores lembrando pormenores, cavalos ainda com branquejos da espuma do suor e cachorrada no trote mole do cansaço e do festim das duas presas que devoraram ainda mal mortas, caminhava na frente.
Princesa, cadela nova e espevitada ainda, saiu da estrada. Ganiu um alerta e sustentou. Juntaram latidos. Esporas nos cavalos. Uma paupérrima cadela morta. Caçoadas. Lapórte* saiu meio de lado, levantou o focinho, entesou a cauda e rumou mais para o fundo do cerrado. Instinto, seus lugares-tenentes Toronto e Lucrecia o seguiram. Agora era toque de achado. Acorreram todos.


Gervásio gostava da Ana e ela gostava do Tonico, do retireiro Toniel, do maquinista Dedinho e do primo Zé Antonho. Era ela não tão bonita de chamar atenção de longe. A cor do mel da jataí, os olhos pertencentes da novilha guzerá, cabelos negros apechinhados como caixa de marimbondos agredidos e uma faceirice natural da fêmea que percebe que é fêmea. De perto, chamava a atenção. Mais perto, tornava-se doce e acanhada. Trabalhadeira e honesta como nenhuma.
Amava todos eles porque simplesmente gostava de amar. Aos dezessete anos os corações têm forças de muitos corações e, às vezes, a cabeça sai procurando por todos eles.
O velório, na colônia, seguia tão triste que não havia choro. Ele estava embutido no safanão que deram ao roubar a vida. A morte parecia não ter ficado para valer. Ainda esperavam que ela pedisse desculpa pelo engano e fosse embora meio sem graça.
A senhora, servindo a xícara de café, disse para o delegado de polícia: "Luizinho (ele é filho dela), não concebo acreditar. Para ser advogado tive orgulho, mais porém para ser advogado delegado de polícia não concebo dormir. O teu pai te chamar para ver a Aninha estrompada. Ela, a coitadinha, ainda hoje cedo veio aqui trocar três ovos por uma ração de fermento - fungou e fingiu enxugar os olhos no avental – Mataram ela longe. Foi o estropício do Gervásio do caminhão da linha de leite. Nossa Senhora viu, prende ele".
Pai e filho sorriram. Estavam certíssimos. Sabiam que o assassino da Ana era eu, aquele que precisava escrever uma estória.

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Literatura, paixão do Batata.


Mais um texto do Batata, do fundo do báu, fechado às 16:38 do dia 13 de Setembro de 2001, três dias antes dele completar 61 anos. Nesta foto montagem, usei como pano de fundo a paisagem que ele via todos os dias. Tirou mil fotos deste plano. Até parece que ele retorna à sua velha casa pra tomar umas e outras com os amigos.


Gente chegando. Os vizinhos chegam montados, em carroças ou charretes. Soltam os animais no piquete atrás da capela. Arreata pendurada no telheiro perto da caixa d água.
Os homens chegantes logo formam “rodinhas”. Caçoadas e risadas. Alegria no encontro de camaradas. Cigarrões de palha azulam o ar parado.
As mulheres se aproximam com recato. Em primeiro, entram na capela para honrar o andor da Virgem. Trazem flores e ramos. Júbilo da Páscoa. Perfumes agrestes agradecem o dia festivo. As meninas acompanham as mães. Os moleques correm lá fora.
As confissões terminaram Padre Geraldo anuncia a saída da procissão. Duas filas paralelas são formadas. Homens à direita, mulheres na outra. O padre abre o préstito Carrega o ostensório e vai debaixo do baldaquino de cetim vermelho. Segurando as lanças do baldaquino estão oito fazendeiros da “Ordem de Cristo”. Vestem ópas vermelhas, também de cetim. Crianças vestidas de anjinhos vão logo atrás. O bloco das senhoras do “Apostolado da Oração” puxam as rezas Os Congregados Marianos a as “Filhas de Maria” orientam os cantos O andor de Nossa Senhora Aparecida está entre esses dois blocos e é carregado por oito homens que se revezam Vem a fila das crianças. Em seguida, a dos homens e mulheres casados. As duas alas dos solteiros fecham a procissão.

“Ave, Ave, Ave Maria - Ave,Ave, Ave Maria ” O canto se aproxima da curvinha do Ipê Amarelo, à meio caminho da ida. Logo abaixo está a cerca viva de “mamona-de-leite” que sombreia a caixa d água da colônia de baixo. Desta moita, ninguém até agora pode explicar porque, saiu, no repente, a vaca Fumaça. Parida de novo, vinte arrobas de hindu-brasil com a fama de carregar no cupim o próprio capeta Ela deu uma corrida transversal e, depois apontou na direção do séqüito Foi “memo” que jogar uma pedrinha em cima de um cardume de lambaris. Debandada geral. Alguns moleques treparam no ipê. Cada carregador do andor escolheu uma direção O padre sumiu. Saindo por debaixo da opa, apareceu um revólver. Homens formando um semi-circulo protegendo as mulheres que voltavam para a capela. Décão, valente como sempre, desviou a atenção do animal agitando a bandeira dos “Marianos”. Cuta, chegou montado e dominou a chifruda
Refeito o susto, refizeram a procissão que ficou cheia de risos.
No jantar, padre Geraldo comentou: “Aquela vaca Fumaça me abriu o apetite”. Tudo acabou bem. A bezerra parida se chama Procissão. Linda...


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sábado, 26 de junho de 2010

Um Caipira de Opinião





Textos do Batata

Escrito em 16 de Abril de 2003

Conservamos a pontuação original do autor, Luis Carlos Castro Palma, o Batata.

Terezo, nasceu neto da Tereza, que era escrava. Alto, ombros largos e manoplas capazes de sustentar um garrote marrudo pelas ventas. Barbicha rala e branca, tipo “ mola de binga“. Vozeirão baixo e profundo, que se escutava de longe. Era de natureza calma, gestos comedidos e a entonação das suas frases tinha algo de eclesial. Reflexo de uma alma mística.
Na juventude, manteve a fama de ser ateu. Coisa rara na colônia de uma fazenda ali pelos anos cinqüenta. Não discutia religião. O seu argumento era irrespondível:“ Nem se Deus viesse conversar comigo, eu ia acreditar nele”. Por menos que pode parecer, não era um revoltado. Alguma coisa aconteceu, dentro ou fora dele, que abafou a sua fé. Isso lhe causava muitos aborrecimentos, por exemplo: não havia na colônia uma mulher, casada ou viúva, que não tentasse heroicamente converte-lo ao bom caminho. As moças tinham medo e algumas diziam que ele era “ primo do diabo “. A mãe chorava, o pai dizia: “ batizar, batizei . Nunca pedi pobrema“. A descrença calma do Terezo incomodava os outros e muitos não entendiam o "porque" do padre Geraldo trata-lo tão bem e até existir uma certa amizade entre os dois.
O rio descia a sua água com moleza. O sol da tarde esfregava cores incríveis. Absorto, Terezo assustou quando percebeu a presença de uma pessoa perto das costas. Virou rápido e deparou a figura de um velho, muito velho. A primeira impressão foi a de que o ancião era cego. Maltrapilho, tremulo ele parecia a mais frágil e solitária das gentes . A segunda surpresa do Terezo foi o tamanho do saco que ele carregava nas costas. Levantou-se, ficou de frente e saudou. Resposta em inesperada voz forte e firme. O chegado colocou o saco no chão e Terezo notou que era muito leve. O farfalhar, ouviu, que eram folhas. Relence, lembrou : ali , por aquelas bandas, aliás, mais para frente, no socavão da Serra do Papagaio, morava um ermitão que entendia a medicina antiga dos antigos . Preparava remédios com ervas e raises, e mais, além de dominar as rezas mais escondidas e bravas. Muitos diziam que era um doido. Só podia ser ele. Conversaram. Terezo esqueceu a vara de pescar e conversaram mais. Noite chegando, acenderam fogo, assaram peixe e conversaram mais. Terezo ia pernoitar na beira do rio para aproveitar o domingo. Passaram a noite conversando. Rio quente pelo sol e a conversa ainda mastigava o assunto deles. Um para cada lado. Despediram os corpos e foram embora.
Terezo creu. Não mudou , apenas mudou uma fé abafada na cabeça para reforçar uma calma , antiga , no coração. Creu em si mesmo porque o ancião lhe desejou, no encontro, uma “ bastardes “ com o amor manifesto no mesmo. Uma alma mística que procurava companheira.


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Arranco tatu sem fazer força



Segundo o escritor Paulo Dantas, biógrafo e amigo de Monteiro Lobato, literatura é denúncia, referindo-se aos escritores Euclides da Cunha e Monteiro Lobato. No caso do Luís Carlos Castro Palma, o Batata, contratado para escrever crônicas semamais sobre a vida caipira, ele desenvolveu uma narrativa de memórias e causos que ouviu contar, sempre enaltecendo os personagens que marcaram sua vida. Neste texto, lavrado em 3 de março de 2003, o herói é Matias, um homem simples, empregado de fazenda.


Arranco Tatu sem fazer força
por Luís Carlos Castro Palma - o Batata

Era fácil reconhecer o dia em que Matias ia tomar uma bebedeira. Vestia, no pescoço, um lenço de seda azul com listras amarelas. Para ajustá-lo, tipo nó de gravata, um broche anelado, feito de chifre, que representava a cabeça de um touro guzerá. Peça bem feita destacava os olhinhos que imitavam rubis (Matias jurava que eram verdadeiros). O adorno era o seu xodó e lembrança de uma viagem a Belo Horizonte.
Caboclo lavrado no machado, Matias era desempenado, alto e forte. Feições que chamavam a atenção pelo queixo forte, nariz de gavião e incríveis olhos esverdeados. Quando moço, ele que era o xodó... das moças.
Casado com Minda (Delminda), criava com paixão um casal de filhos. Era um dos melhores trabalhadores da fazenda. Executava, com gosto e competência, qualquer serviço. No meio dos camaradas mostrava-se alegre, xistoso e muito bom companheiro. Perto de estranhos, ficava meio caladão sem esconder a simpatia. Era muito religioso e todas as sexta – feiras, na Quaresma, convidava o pessoal para cantos e terço na sua casa. Sempre dizia: "Quem sabe amar, ama Deus".
Era econômico, pensava no futuro dos filhos e no bem-estar da família. Sempre aproveitava muito bem a terrinha cedida pela fazenda para os mantimentos; no pastinho da colônia nunca faltou uma criação de sua posse. Horta farta, bem formada e cuidada. Mangueiro e chiqueiro nutrido de porcos. A sua capoeira de aves era melhor que a do patrão e a frangada carijó o seu orgulho. Nasceu na roça, sabia viver na roça.
No sábado qualquer, a mais ou menos cada dois meses, ele tomava um banho quente e bem caprichado. Vestia calça bem passada a ferro, camisa quadriculada. Barba feita e cabelo aparado pelo Dadinho, barbeiro da fazenda. Botinha sanfonada feita pelo Delcidio Malaspina. Preta, para ser luxo. Gastava meia-hora para ajeitar o lenço. As onze e meia, subia no carroção da fazenda que levava o pessoal até a venda do "seo" Miguel. Nestes dias sempre levava um saco onde grunhia uma leitoa bem escolhida. Naquele carroção sempre ponteava uma viola.

Assim eram os agregados

Passado o entusiasmo da alegria da chegada e bebidos os dois primeiros goles, Matias chamava "seo" Miguel para um particular. Negociavam a leitoa e o vendeiro sempre encomendava uns frangos. Tinha o dia na frente. Jogava malha, truco e cantava com o violeiro Zé Tindolfo. Bebia cachaça com capilé, comia manjuba salgada e lingüiça curtida. Tornava-se um daqueles raríssimos bêbedos alegres e sem confusões. Todos conheciam a sua alegria, participavam e respeitavam. O seu brado etílico era: "Hoje eu arranco quarqué tatu sem fazer força". A turma gargalhava e repetia o grito.
Chegava em casa pelas nove horas. As crianças já dormiam. Minda o esperava com amor e uma canja gorda. Sempre ganhava um agrado: um corte de tecido, um vidro de perfume ou uma bijuteria vistosa. Como ela o amava! As crianças ganhavam doces e roupinhas. Matias bebia a canja numa caneca de folha e contava as vantagens do seu dia. Não dormia, desmaiava. A mulher, que havia ajudado ele se despir, só agora conseguia tirar o broche de cabeça de touro e o lenço de seda.
Acordou virado para um lado e o mundo para o outro. O teto girava. A boca tinha o gosto de rojão estourado e a língua parecia uma pedra de amolar canivete. A cabeça, por dentro, não tinha direção, semelhava uma jaca madura que estava balançando para cair. O corpo estava cheio de coceiras mas ele não sabia onde elas se localizavam exatamente. Rangeu os dentes: "Mardita Tatuzinho, nunca mais".
Minda o esperava na cozinha. Ele chegou abatido e meio sem graça. Bebeu quase um copo de café bem quente e foi se lavar, excepcionalmente, na bica de lavar roupa. Na volta, cruzou com Dadinho, que passava pelo terreiro. Não se falaram, mas ambos tiveram uma crise de risos. Na cozinha, comentou com a mulher enquanto empoleirava um filho em cada perna; "Minda tive cada sonho. Sonhei com um corguinho limpinho, cheio de lambari de rabo vermeio. Depois veio outro, esse ruim. Um bando de capetas montou uma serraria num lugar redondo. Não paravam de serrar com aquela serra de fita. Aquela barulhenta igual a da serraria aqui da fazenda. Fui descobrindo que o lugar oco era o oco da minha cabeça. Dói até agora ". Riu e se voltou para as crianças: "E a minha filhotada, ganhou doce? Oceis é o sempre do pai".

ARRANCO TATU SEM FAZER FORÇA